16.4.11

A DERIVA, EM DEVIR

a menina estava brava, muito brava mesmo, chorando aos gritos. incrível que um corpinho de três anos pudesse expressar tão intensamente sua insatisfação.
quando olhou para o lado, viu um espelho, percebeu seu estado "desarrumado" e imediatamente parou de xilicar e começou a se relacionar com sua imagem no espelho, como se nada tivesse acontecido...

quem assistia a cena, além da surpresa pela mudança de humor imediato, começou a questionar a veracidade daquela braveza toda, pois será possível estar bravo de verdade e deixar de estar, imediatamente?

sim, não só é possível, como é saudável.
a capacidade de variação de emoções é um dos sinais de corpo bem organizado.

o bebê e a criança, em seus corpos conectados, sem tensões fixas, vivem em variação emocional constante.

isso quer dizer, viver no presente, relacionar-se com o tão desejado "aqui e agora".

a emoção é instintiva.
todo ser vivo, seja barata, mosquito, elefante, peixe ou gente, tem suas ações sob o domínio de suas emoções.

e todo ser vivo está em constante relação com o "fora", está a deriva.

a deriva não é o caos, mas também não é controlável.
são forças com as quais nos relacionamos, é a natureza em ação.

somos corpos organizados a deriva!

esse corpo organizado a deriva, continuamente em transformação, tem interconexões que geram emoções, e essas emoções direcionam nossas ações.
emoções "fixas" geram ações fixas, músculos tensos, respiração limitada e reduzem nossas percepções, ficamos empacados, passamos das emoções instintivas para as emoções culturais.

as variações de emoções, agem diretamente nas nossas ações, liberam nossos músculos, permitem a fluidez da respiração e ampliam nossas percepções.

e esse é um recurso nato, do corpo organizado a deriva.

por isso as crianças não investem no ressentimento, pois estão em variação constante.

esse é um dos movimentos necessários para a desescolarização, reconquistar a capacidade de entrar em variação emocional; as vezes tão distante do adulto.
assim nos desatamos da escolarização que investe no corpo desequilibrado e tenta controlar a natureza, porque um corpo desorganizado sente-se ameaçado pela natureza, mas não temos escolha, a natureza é incontrolável e impossível de não fazer parte da vida.

a desescolarização investe na preservação, ou reconquista, do corpo organizado que celebra a deriva.

o contato com as crianças, especialmente os bebês, nos inspiram esse caminho, esse retorno (sempre inédito) do corpo organizado a deriva que permite a variação emocional e assim vive no presente.

o paradoxo é que quanto mais variamos emocionalmente mais consistente nos tornamos.
quem não varia, torna-se obsessivo, um personagem, uma caricatura.

na variação vamos nos afirmando.

em outras palavras esse movimento poderia também ser chamado de desapego.

desapego das emoções, do ressentimento, do conhecido;

e das garantias, que geralmente são ilusórias.

2 comentários:

Bianca Lopresti disse...

Quando nos prendemos a uma única emoção, nos limitamos a escuta. Ouvimos e entendemos de um mesmo ponto de emoção.

Como: duas pessoas em relação de raiva- ódio. o seu simples "Bom dia!" é profundamente irritante.

Quando abrimos essa possibilidade de variações de emoções, abrimos também a escuta. nos percebemos mais ativos e dispostos a receber o outro.

É Ana, isso faz todo o sentindo

Beijos Bianca

Fernanda Mouco disse...

Belíssimo post... Nunca tinha pensado sobre isso. Obrigada!

Um beijo,
Fernanda.